tormenta
Virgilio acordou bem cedo, com o dia ainda escuro, e pensou seriamente em não sair da cama. Enquanto preparava a marmita, ia amaldiçoando seu patrão por tê-lo mudado para o turno da manhã, justamente na época do inverno. Uma garoa fina começou a cair quando ele trancava o portão, e só então lembrou que o guarda-chuva havia ficado lá dentro. Pegou o ônibus já cheio, mas achou um lugar no fundo, onde poderia respirar, se tivesse um pouco de sorte. Lá fora, a chuva foi aumentando, tal qual o vento. Os vidros embaçaram quando todas as janelas foram fechadas, e fez-se a sauna. Crianças chorando, homens tossindo e mulheres resmungando. O coletivo transformava-se, aos poucos, numa sucursal do inferno. O coitado suspirou, lembrando que poderia ter ficado em casa, ouvindo seus discos de Mercedes Sosa. Mas ele colecionava dívidas há um bom tempo, e esse era um luxo que não podia se dar. Pela janela, ele viu que a rua já havia se tornado um pequeno córrego. O trânsito foi ficando cada vez mais lento, até que parou. Os carros não andavam, e algumas pessoas começavam a subir em bancas de jornal. A água começou a invadir o ônibus, e alguns cachorros eram carregados pela correnteza. Minutos depois, alguns carros já estavam submersos e o pânico tomou conta de todos. As portas estavam emperradas e tudo aconteceu muito rápido. Estavam debaixo d’água, sufocando… e Virgílio deu pulo. Seu teclado estava ensopado de baba, o dono da empresa esperava explicações para aquela sonequinha no meio da tarde.
Bonus track: Mercedes Sosa “Alfonsina el Mar”