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Sobremesa canibalista

agosto 13, 2010

A vida de Dulcinéia era bem ordinária, porém pacata. O marido levantava às 4 da manhã, pois trabalhava como cobrador numa empresa de ônibus da zona oeste. Ela tinha quatro filhos pequenos, cujo desempenho escolar não era lá dos melhores. Sua única desavença era com Rosália, a vizinha gorda que morava num sobrado do outro lado da rua, e que vivia debochando de sua família e de seu cotidiano insosso. Para aliviar a tensão e dar uma mudada na rotina, a dona de casa gostava de experimentar receitas diferentes que encontrava pela internet.

O bolo com sementes de papoula e alcaravia que Dulcinéia preparou estava cheirando tão bem que ela precisou colocá-lo sobre o telhado da lavanderia para arrefecer ( e também para que as crianças não o devorassem antes da hora). Daí tocou o telefone, os infantes fizeram o dever de casa, tomaram banho, depois todos jantaram, começou a novela, e então foram dormir. Esquecido lá fora, o tabuleiro foi regado com sereno de uma madrugada inteira, cozinhando ao luar.

Pela manhã, quando as pestinhas perguntaram pela tão inusitada sobremesa, Dulcinéia lembrou-se de tê-la deixado ao relento. Estava tão ocupada com o preparo do desjejum que nem percebeu a trupe escapando de fininho para devorar o bolo. O que ela não sabia é que as sementes haviam brotado sob a tutela da lua cheia. Como que por encanto, os ramos foram subindo em espiral, formando um caule resistente e com muita folhagem. As crianças, atônitas, assistiam àquela estranha metamorfose com um misto de espanto e prazer.

A medida que os primeiros raios de sol foram banhando o bolo, as raízes já robustas e espinhosas, espalharam-se para além do tabuleiro, tomando conta de todo o telhado. Etelvino, com seus sete anos, foi o primeiro a se render a curiosidade: pegou uma escada e subiu, para ver mais de perto o fascinante espetáculo. Os brotos acabaram dando origem a uma  faminta planta canibal, que rosnava ferozmente lá do alto. Uma a uma, as crianças foram degustadas, e não sobrou nem um ossinho para contar a história. Jupira, a caçula, ainda teve a chance de gritar, chamando a atenção da mãe.

Ao ouvir o desespero de sua filha, Dulcinéia correu até a varanda, para deparar-se com a monstruosidade que se sacodia sobre o telhado. Em trinta e cinco anos de vida, a dona de casa nunca vira nada tão nojento, e acabou desmaiando sobre o tapete de lycra trançada. O gosto de sangue aferiu ainda mais fome àquela criatura horrenda, que parecia indócil. Tentáculos robustos e incadescentes começaram a brotar de seu caule, descendo aos cachos em direção à mãe dos pequenos aperitivos, devorados pouco antes. Com a fome de mil jumentos, a planta canibal içou-a pelas pernas e começou a arrasta-la em direção ao telhado…

Lentamente, o corpo de Dulcinéia foi suspenso, até que sua cabeça bateu na calha que rodeava o telhado. Ela acordou meio desnorteada, e enfim deu-se conta do horror que havia acontecido a sua familia. Tomada por um ódio de leoa africana, ela se livrou dos tentáculos e correu até a cozinha, onde agarrou o primeiro facão que encontrou sobre a bancada. Fora de si, ela pulou para cima do telhado e começou a picar aquela aberração esverdeada, em busca de seus filhos. Foram momentos desesperadores até que conseguisse enfim, dar cabo daquela coisa.

As crianças, felizmente, não chegaram a ser totalmente consumidas pelo ácido estomacal da nefasta criatura. Foram rolando telhado abaixo, e então seguiram correndo para o quintal, onde arrancaram as roupas e tomaram um demorado banho de mangueira. Dulcinéia, aliviada, pediu para que os pestinhas ficassem na caluda, e não contassem nada para ninguém, inclusive o pai. Depois, já refeita do susto e com a janta pronta, ela aproveitou o tempo livre para anotar num papel de carta a receita daquele bolo e a entregou para Rosália, com ótimas recomendações.

3 Comentários leave one →
  1. Avatar de Humberto
    agosto 13, 2010 6:56 pm

    Hahahaha, ADOREI a Dulcinéia!!! Adorei!

    P.S.: Já votei no blog, tá, boa sorte!
    😀

  2. Avatar de maria
    agosto 15, 2010 4:08 pm

    sensacional. surrealismo suburbano!

    (tô vendo historinha de votar aí no comentário de cima, votar aonde? me diz que eu voto!!)

    • Avatar de Rafael Paschoal
      agosto 15, 2010 8:27 pm

      Tem um botãozinho, ali perto da minha foto, onde você pode votar no blog!!!
      Vote várias vezes!! Não tem limite mesmo…. rs rs rs

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