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Uma Pequena Vitória

abril 6, 2017

29 de Março, 2005

Michel se sentia diferente dos outros meninos, não conseguia interagir com ninguém em sua classe, e quase toda noite chorava silenciosamente até conseguir pegar no sono. Seus desejos mais íntimos não eram como os das pessoas consideradas normais. Nunca havia tocado noutro rapaz, muito menos beijado algum homem, mas tinha certeza de que sua orientação sexual não era como a de seus colegas. Para ele, não havia nenhuma dúvida, seria uma questão de tempo até que tudo viesse à tona.

Durante quase três meses, Michel acompanhou o programa Big Brother Brasil sem perder nenhum episódio. Descobriu em Jean Wyllys um ídolo, por assumir em rede nacional sua sexualidade, de forma tão valente e destemida. A cada intervalo comercial, ouvia calado às críticas de sua mãe sobre o oportunismo barato do participante. Desde então, torcia fervorosamente pelo professor baiano e acreditava numa possível vitória, que traria muito respeito e também desmistificaria a homossexualidade.

A cada paredão, Michel fazia uma nova promessa, para que Jean permanecesse no programa tempo suficiente para mudar a cabeça das pessoas e transformasse preconceitos em respeito, amor e companheirismo. Sabia que seria uma luta difícil para um exército de um homem só, mas nunca impossível. Apesar de ter somente quatorze anos, já tinha uma visão muito abrangente do mundo e de seus valores deturpados.

Quando Jean foi indicado para a eliminação ao lado de Pink, Michel prometeu a si mesmo que se o professor não saísse naquela noite e posteriormente se tornasse o vencedor da competição, ele iria se assumir gay perante toda a família. Não importava se iriam aceitar ou não sua declaração, ele só queria que seu ídolo mostrasse a todos que dar o cu não torna ninguém um monstro. Pois Jean não só ficou na casa, como seguiu para a final, ao lado de Grazi.

E depois de uma torturante noite de terça-feira, Michel vibrou explosivamente com a vitória de Jean. Gritou por toda a casa, correu pela vizinhança e fez com que todos soubessem de sua alegria naquele momento tão aguardado. Com a camiseta encharcada de suor e um semblante de alívio, o garoto voltou para casa feliz da vida, já imaginando as palavras que iriam dar início ao seu comunicado.

Depois de tomar um banho quente, pentear os cabelos e escovar os dentes, Michel desceu as escadas e foi até a sala de estar, onde seus pais conversavam sobre amenidades e comiam as roscas recheadas com chocolate que sobraram no domingo de Páscoa. Com um sorriso no rosto, o menino perguntou se podia interromper a conversa por alguns segundos, enquanto puxava uma cadeira.

Sem ouvir um pio sequer de seus pais, Michel fez um falou sobre suas inclinações sexuais, assim como todos os problemas que havia enfrentado até então, por ter de viver escondendo sua verdadeira natureza. Com lágrimas nos olhos, ele terminou seu monólogo depois de quase vinte minutos. Deu um beijo no rosto da mãe, e ouro na mão direita do pai. Enxugou o rosto com a manga de seu pijama, pediu licença aos pais e foi para seu quarto.

Na manhã seguinte, o menino foi acordado pela mãe, num horário incomum. Lavou o rosto, escovou os dentes e vestiu uma roupa que estava arrumada em cima da cômoda. Sem nenhuma explicação, seu pai o levou até o carro, e pediu para que entrasse, sem fazer muitas perguntas.

Michel foi internado numa instituição psiquiátrica, onde permaneceu por duas semanas, tomando choque nas têmporas. Por mais que o mundo parecesse aceitar as diferenças exibidas na televisão, alguns conceitos ainda não haviam sido muito bem fundamentados para que ele criasse tantas expectativas positivas acerca de suas diferenças.

06 de Abril, 2017

“Estou constrangido por participar dessa farsa, dessa eleição indireta, conduzida por um ladrão,  urdida por um traidor, conspirador, e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos. Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado das periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem teto, dos sem terra, eu voto não ao golpe. E durmam com essa, canalhas!”

Após votar contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, Jean Wyllys cuspiu em Jair Bolsonaro e o Conselho de Ética abriu um processo para apurar o caso. O deputado Ricardo Izar (PP-SP), relator do processo, havia proposto a suspensão do mandato de Jean Wyllys por 30 dias, mas o parecer foi rejeitado por 9 votos a 4. Após a rejeição do relatório, a comissão aprovou um parecer alternativo, apresentado por Julio Delgado (PSB-MG), que recomendou a advertência ao deputado do PSOL. Para Delgado, o cuspe representou uma “ofensa moral”, mas não foi premeditado. Após a decisão do conselho, Jean Wyllys divulgou uma nota:

“No dia da sessão do impeachment, tive uma reação espontânea, humana, contra os xingamentos e agressões que há anos recebo na Câmara por conta da minha orientação sexual e das minhas posições políticas. Nunca antes na vida tinha cuspido em alguém (e não é a forma em que eu costumo agir, nem na Câmara, nem na minha vida privada), mas sou humano, tenho sangue nas veias, e o grau de violência, desrespeito e ofensas que recebo desde que estou deputado é intolerável. […] O Conselho de Ética, hoje, finalmente, decidiu não suspender meu mandato. A pressão social valeu a pena. É uma vitória da democracia, e, sobretudo, das pessoas que se mobilizaram para impedir que um acordo de bastidores na Câmara calasse nossa voz. Obrigado!”

Michel se emocionou com essa pequena (porém significativa) vitória e compartilhou a notícia em seu Facebook.  Com os olhos marejados, ele relembrou da covardia cometida pelos seus pais, em nome da religião e da ignorância. Faz quase dez anos que eles não se falam. Michel até telefona para a casa dos pais, seja nos aniversários, Natal ou um feriado qualquer, mas eles desligam ao ouvir sua voz.

Ao completar a maioridade, ele saiu de casa e foi morar com Rúbio, que conheceu pouco depois de terminar o ensino médio. Os dois estão juntos até hoje e são donos de um bistrô no Bairro de Fátima. Esta noite, eles saíram com mais uns amigos para celebrar o respeito, o amor e o companheirismo. Entre rodadas de chope e bolinhos de bacalhau, um garçom desligou a TV que estava sintonizada no Big Brother Brasil. Ninguém percebeu.

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