o sabor
Primeiro dia de aula, depois da rotina desregrada das férias. Acordaram cedo, tomaram café da manhã e depois arrumaram a mochila. Na merendeira, um suco de uva e mirabel de morango serviriam para matar a fome no recreio. Dalva estava nervosa por reencontrar sua turminha, e por isso não conseguiu terminar o almoço. Seguiram pela rua de paralelepípedos, e o calor escaldante foi a desculpa de Eliane para fugir da dieta e inventar que deveriam tomar um sorvete. “Só para refrescar, Dalvinha”. A menina sorriu, e aceitou a oferta da mãe.
“O meu é sabor de coelho!”, pediu ao balconista. “Sabor de coelho? Esse não tem.” Diante da negativa, ela insistiu. “Quero o meu sabor de coelho!” Cruzou os braços, fez birra e franziu a testa. Impaciente, Eliane ameaçou ir embora quando a pirraça piorou. “Eu quero de coelho, eu quero de coelho, eu quero de coelho!” A menina esta irredutível quanto à sua escolha, e não demorou muito para começar a espernear-se pelo chão, batendo com a cabeça no pé da mãe. O rapaz até tentou esculpir um maldito coelho sobre a casquinha, mas não era exatamente aquilo que ela queria. “Isso não é de coelho!”
Desistiram do sorvete e Dalvinha ficou na escola, com semblante emburrado. Justo ela, que nunca fora dessas coisas, entrou com os bracinhos cruzados e uma “tromba” de meio metro. No caminho de volta, Eliane refletiu sobre o comportamento da infante e teve uma idéia. Passou no mercado, fez algumas compras e já chegou preparando o almoço. Quando a pequena voltou da escola, sob a tutela de Tia Izenilce, encontrou a mãe fatiando cenouras, com um sorriso rasgado no rosto. Seus olhos brilharam como estrelas, e ela exclamou, cintilante: “Mamãe, você conseguiu o sabor de coelho!”
“Então é isso? Cenoura é o tal sabor de coelho?” A menina acenou com a cabeça, afirmativa. “Vá tomar um banho, que você está fedendo a galinha. Tem um surpresa no forno pra você!” Dalvinha correu para a suíte, e quase esqueceu de enxaguar os cabelos, de tão entusiasmada. Sentiu um cheiro diferente vindo da copa, que a deixou com a boca cheia d’água e os dedos nervosos. Desceu as escadas em disparada e, então, deu de cara com uma das cenas mais grotescas e vis de sua vidinha. Em cima da mesa, um coelho assado, com a pele dourada, e uma cenoura cravada na boca.
Em estado de choque, ela sequer conseguiu chorar. Ficou parada, atônita, olhando para aquele bicho assado e fumegante. Eliane, desesperada, jamais poderia imaginar que a filha ficaria tão apavorada com o almoço. Sacudiu-a, abraçou-a e, por fim, jogou um copo de água gelada na cara da menina. Só isso para tira-la do transe. E então veio o pranto. Um choro que perdurou até a noitinha, quando Rogério chegou do trabalho. Foram seis semanas até que Dalvinha perdoasse a mãe. E mais alguns meses para esquecer que seu bichinho de estimação fora cruelmente levado ao forno, sem ao menos ter a chance de se despedir. Aquele trauma a tornaria, anos mais tarde, uma terrorista do Peta, onde seu maior feito fora o envenenamento de 700 pessoas num cruzeiro, ao servir carne de coelho com estricnina.