Por cima do muro
As folhas caídas da mangueira forrando o quintal. O ninho de bem-te-vis nas travessas do telheiro. O cheiro de goiaba vermelha madura. E então o barulho da sandália rasteira sobre o chão de terra batida. As pedrinhas estalavam com o atrito da sola, enquanto Elisabete balançava o corpo para estender as roupas no varal de arame. Na vitrola, um disco de Marisa Monte, o único que tinha, dava o tom daquela tarde alaranjada em Irajá.
Zélia havia posto água para ferver, enquanto aguardava Everaldo voltar com o pão. Entre os refrões de “Não é fácil”, brotou do bule o cheiro de café. A dona de casa ficou debruçada sobre o muro, pitando um cigarro, para ouvir melhor a música. Eram vizinhas, e compartilhavam sensações. Elisabete abriu-lhe um sorriso e, depois de colocar a última calcinha para secar, permitiu-se um dedo de prosa.
Falaram mal da vizinhança inteira, lamentaram a alta no preço do tomate, trocaram receitas, fofocaram mais um pouco e depois pediram perdão a Deus pelas indiscrições. Elisabete pediu licença para rezar o terço, pois já passava das seis, e Zélia foi abrir o portão para o marido. Uma serviu arroz, com feijão, bife e batatas fritas no jantar. A outra preparou um Miojo de galinha caipira.
Naquela noite, enquanto tomava banho, Zélia ficou pensando na amizade que acabara de nascer, e fez um roteiro mental do que usaria como pretexto, na tarde do dia seguinte, para puxar assunto com Elisabete. Esta, já deitada, pensava numa canção envolvente para chamar a atenção da vizinha, por quem se apaixonara no momento em que viu aquele belo par de mamilos por baixo da blusinha estampada de viscose.